Por três vezes as 75 mil pessoas, reunidas no “Giant Stadium de New York, exclamaram: “LOVE!”(amor!) E o clamor de suas vozes, propagado em quase todos os idiomas, através de incontáveis emissoras de rádio e televisão de sessenta países, foi ouvido por milhões de outras pessoas de todas as raças. Era o mundo inteiro rendido, naquela apoteose, ao raro poder de um homem que não havia nascido em berço de ouro nem com a tez de porcelana dos descendentes de famílias de sangue azul.
Ali estava o “Rei”, no esplendor de sua majestade, espontaneamente ovacionado pelo povo orgulhoso da nação líder das nações, bem no coração da cidade mais cosmopolita de nosso planeta. E sua coroa jamais passaria a outra cabeça.
Então, nos quatro pontos do globo terrestre, simbolizado na resplendente bola de ouro (a bola de seus gols é de couro), o que se admirava era também a vitória do “homem de cor”, de origem obscura, irmão glorioso do negro hostilizado na Rodésia e na África do Sul, e ainda hoje vítima de segregação desumana na própria nação que o “Rei” contempla, submissa a seus pés.
Para tamanha homenagem não contara com o respaldo de exércitos poderosos; não lera Maquiavel, Tácito e Marx; jamais fora paladino de doutrinas políticas de partidos de centro, de direita ou de esquerda. É apenas um homem do povo, por fora e por dentro, um preto, um plebeu.
Agraciado por reis e rainhas, por chefes de estado, autoridades religiosas, comandantes de tropas, sábios, artistas, poetas e ídolos das multidões, poucas personalidades extraordinárias jamais ocuparam mais espaço do que ele nas páginas de jornais e revistas.
Suas façanhas são comentadas nas universidades, nos bares e nas fábricas, em cabanas perdidas nas regiões glaciais, em tendas armadas nos desertos e selvas, assim como no recinto de mansões luxuosas da burguesia capitalista. Sua imagem, tão reproduzida em clichês quanto às dos astros de Hollywood, pode ser facilmente reconhecida por um mongol, pelos pescadores de pérolas do Pacífico, por um velho inca das margens do Titicaca.
E assim, sem diplomas e sem lauréis acadêmicos, ele tem feito pela diplomacia brasileira tanto quanto Joaquim Nabuco, Rio Branco ou Oswaldo Aranha. Sem tribuna nas assembléias das nações, sem eloquência e sem erudição, ele conquistou com o esporte as simpatias gerais de outros povos por esta nação sem inimigos, da qual se tornou o mais bem-sucedido dos embaixadores. Para confirmá-lo, oficialmente, a presença do Chanceler Azeredo da Silveira, Ministro das Relações Exteriores do Brasil.
Ei-lo consagrado o cidadão do mundo! Sim, o Rei Pelé, estático e emocionado, mão erguida para o triunfal adeus. Antes era o salto magistral após cada gol. Doravante o descanso dos músculos, cordas secretas de um “Stradivarius”, vibrato de comoção de milhões de súditos-torcedores, para quem acaba de oficiar a última cerimônia pública no verde relvado de seu palácio real: um campo de futebol.
Afinal, com lágrimas nos olhos, só tem um pedido a fazer como tributo de vassalagem e em nome do amor: ajuda à infância abandonada, aos meninos de rua. Que belo exemplo nos dá, em sua despedida do esporte – que tão cedo não terá outro igual – esse rapaz maravilhoso de Três Corações.
Bernardo Coelho de Almeida. Publicado originalmente no Jornal O Estado do Maranhão, outubro de 1977.