A temporada de pequi vai até março. Aproveite para descobrir seus outros poderes além de encantar o paladar. O fruto está sendo usado na cosmética, na farmacêutica e até em pesquisas de prevenção do câncer
O pequi carrega em si a contradição da delicadeza das flores e da brutalidade dos espinhos. Uma mordida em falso e haverá consequências. É um fruto de extremos: há quem ame e quem odeie. E se há quem goste de comê-lo puro e de adicioná-lo a receitas, outros o usam de forma completamente diferente e inovadora. Na Universidade de Brasília (UnB), um estudo já identificou propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias no óleo extraído do pequi. Na Universidade de São Paulo (USP), provaram seus efeitos na prevenção de câncer.
O fruto também ganhou espaço no segmento dos cosméticos. Além do poder hidratante inerente a todo óleo, o do pequi apresenta a vantagem de modelar os fios dos cabelos. Por isso, foi adicionado a diversas formulações de xampus, especialmente nos específicos para o público dono de cacheados, já que o efeito modelador é mais natural.
Na culinária, o pequi está presente não só em receitas tradicionais e caseiras, mas até em drinques. Inclusive, ele já representou o Centro-Oeste em episódio do MasterChef Brasil, pelas mãos da chef brasiliense Mara Alcamin. Na ocasião, ela preparou um frango caipira, arroz e creme de milho acompanhado, claro, de pequi. “É uma combinação do que se come no interior”, explicou.
Segundo a nutricionista Andréa Marim, o pequi é quase um remédio, com muitos efeitos positivos para saúde. “Ele tem um teor elevado de ácidos graxos monoinsaturados, os mesmos encontrados em nozes, em azeitonas e em compostos orgânicos que ajudam a diminuir os níveis de colesterol no sangue e a proteger o coração”, explica.
Portanto, ele pode não agradar ao paladar, mas ainda há bons motivos para acrescentá-lo à dieta. A professora e consultora de alimentos do Senai Helena Malvar recomenda o ingrediente especialmente para quem, assim como ela, é vegetariano. “É um alimento muito rico em proteína vegetal; então, supre bem a falta da proteína animal”, esclarece.
A própria Helena admite que, carioca e sem a tradição de comer o fruto, não gosta muito do sabor, mas reconhece o casamento perfeito do pequi com o frango e dá uma dica: “Em conserva, ele tem um gosto muito mais suave e nenhum cheiro, o que permite que, até quem não gosta, possa saboreá-lo. E o legal de comida é isso: testar e descobrir que algo, que você acha que não aprecia, é gostoso, se preparado de outra forma”.
Um amor pelo pequi que vem de família
Na casa da médica Andrea Kavamoto, 53, os pratos ganham um gostinho especial o ano inteiro. Enquanto muitos só saboreiam o pequi na época da colheita — que vai de outubro a março, segundo o Sebrae —, a médica goiana sempre o inclui em receitas de frango, de risoto e até em pastéis.
O amor pelo pequi vem de família. Andrea chegou a Brasília quando tinha 10 anos, mas trouxe a paixão pelo sabor típico de lá. Ela conta que aprendeu a apreciá-lo com a avó, a mãe e a tia. “A gente sempre comeu, mas confesso que, quando era criança, não gostava do caroço”, lembra. Para resolver esse problema, encontrou alternativas e adaptou as receitas da avó. “Ela usava o fruto com caroço e tudo. Eu fui tentando fazer sem. É bom para os iniciantes se assustarem menos com o pequi; afinal, o importante é o gosto”, comenta, referindo-se aos espinhos que podem machucar os desavisados e mais inexperientes.
Os pratos preparados por ela fazem sucesso. A médica só não conseguiu agradar a filha, mas o marido e os vizinhos fazem questão de participar da “farra do pequi”, como ela mesmo define. É uma forma deliciosa de apresentar aos amigos não goianos o prazer de saborear o fruto mais famoso da sua terra natal.
No cardápio dessa festa gastronômica, os pastéis recheados com carne e pequi são servidos como entrada. Como recheio, o fruto não fica com um sabor muito forte, mas deixa um gostinho singular e especial. Entre os pratos, Andrea destaca o risoto caipira. Na receita, ela usa frango, carne de boi e de porco e, claro, pequis bem temperados.
O fruto antes era colhido em casa, mas, com o passar do tempo, o pequizeiro secou. Porém, se há falta dele no quintal, tem de sobra na geladeira. Para garantir o ingrediente, Andrea tem uma carta na manga. “Na época do pequi, eu os cozinho, depois raspo a massa, que vai se soltando facilmente do caroço, e congelo. Assim, eu tenho a polpa pronta o ano inteiro”, revela.
Andrea reconhece que muitos têm uma relação de amor e ódio com o pequi, mas acredita que ele merece uma chance de conquistar o paladar dos desacostumados. “Às vezes, o pequi muito concentrado e refogado pode ser desagradável para muita gente. Experimente misturar os sabores. Fica mais interessante”, aconselha.
Andrea Kavamoto ensina a preparar pastel de carne com pequi
Ingredientes:
Carne moída (300g)
Pasta de pequi
Cebola
Alho
Sal
Modo de preparo:
Refogue a carne com a cebola picada, alho e sal. Em seguida, acrescente a pasta de pequi e adicione pequenas porções de água até a carne ficar totalmente cozida. Depois, é só rechear as massas de minipastéis.
Anti-inflamatório e antioxidante natural
O professor titular do Departamento de Genética e Morfologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB), Cesar Koppe Grisolia, pesquisa os valores nutricionais e benefícios do pequi há mais de duas décadas. “Começamos com base no conhecimento popular e regional das suas propriedades fitoterápicas. É uma proposta de sustentabilidade, uma vez que o cerrado está sendo destruído pela agricultura. Existem nesse ecossistema muitas plantas com potencial para desenvolvimento de novos fármacos”, ressalta. Ele reforça também que é importante agregar valor ao pequizeiro e valorizar a preservação da espécie.
Ao longo das pesquisas, Grisolia identificou o potencial antioxidante e anti-inflamatório do óleo extraído do pequi. No ano passado, publicou um artigo científico baseado em testes feitos em camundongos jovens e idosos. “Comparando os resultados, o óleo de pequi apresentou uma atividade antioxidante mais efetiva nos animais idosos”, relata.
Há 20 anos, as pesquisas eram feitas em ratos. Em 2000, Grisolia começou a avaliar voluntários, atletas amadores corredores de rua, que faziam uso do óleo em cápsulas. Depois, estudou-se um grupo de pacientes com lupus eritematoso sistêmico, tratados no Hospital Universitário de Brasília, que também tomavam a fórmula. “Em todos esses casos, os resultados foram promissores. Verificamos que esse óleo tem propriedades nutracêuticas, isto é, além de um alimento, melhora muitas funções fisiológicas”, define.
Desde 2016, por conta das descobertas de Grisolia, o óleo do pequi em cápsulas passou a ser comercializado por uma empresa farmacêutica. Virgílio Ribeiro, consultor do Sebrae, 40, começou a tomá-las em agosto do ano seguinte para melhorar o desempenho em corridas. Há nove anos, após um atropelamento, correr foi uma das recomendações da fisioterapia, e nunca mais abandonou a prática. Já participou de meias-maratonas e maratonas por todo o país, inclusive a de São Silvestre.
A preparação para cada uma delas não é fácil. O exercício pesado e cansativo sempre lhe rendeu dores musculares. “Eu sentia o desgaste natural do músculo depois de fazer muito esforço, e aí era descanso e massagem para melhorar”, relembra. Começou a tomar o óleo de pequi para ajudar na recuperação. Um comprimido antes do almoço e as dores pós-exercício diminuíram. As sessões de massagem tornaram-se menos necessárias. “A dor vai existir, ela faz parte do ciclo de um atleta. É um desgaste grande, mas já melhorou bastante”, conta.
Virgílio nunca gostou do sabor do pequi, mas descobriu nele um aliado. Garante que as cápsulas são insípidas e inodoras. Em breve, ele começará a se preparar para uma competição na Serra da Mantiqueira e deve dobrar a dose do sumplemento.
Segundo Romy Naiak, farmacêutica da RKT Indústria, cada cápsula tem 400mg de óleo de pequi. Ela explica que o uso do fruto na alimentação é recomendado, e consumir a fórmula é uma opção, já que não há oferta dele in natura o ano inteiro.
“Atletas têm um processo de oxidação mais acentuado, mas todos nós estamos em um processo de envelhecimento e podemos nos beneficiar dos efeitos anti-inflamatório e antioxidante do pequi”, afirma. Ela recomenda a ingestão da cápsula em alguma refeição: “Por ser um óleo, a absorção vai ser mais eficiente.”
Prevenção de câncer
Uma parceria científica entre a UnB e a USP apresentou bons resultados do óleo de pequi na prevenção do câncer de fígado. “Sabíamos que era um alimento com potencial, com propriedade antioxidante e anti-inflamatória, e, com o professor Grisolia, começamos a estudar sua interação na função hepática, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)”, relata a bióloga Simone Morais Palmeira, mestre em ciências pela Faculdade de medicina da USP.
O experimento em camundongos,consistiu em dividi-los em dois grupos e tratá-los com carcinógenos (produtos capazes de provocar câncer). Os animais, então, desenvolveram lesões pré-neoplásicas, aquelas que precedem a doença. A um grupo era administrado o óleo de pequi, ao outro, não. “No fim, comparamos os dois e as lesões neoplásicas estavam reduzidas nos animais que tomavam o óleo. Além disso, eles tinham adenomas e neoplasias menores”, explica Simone.
A conclusão é a de que o óleo de pequi tem um potencial preventivo e pode inibir o aparecimento de uma lesão neoplásica no fígado. Agora, no doutorado, Simone procura entender as vias metabólicas que ajudam esse processo. “Queremos saber como reduziram, quais os mecanismos e as vias pelas quais isso acontece”, afirma a pesquisadora. “É importante deixar claro que o óleo de pequi não cura o câncer, mas, dentro de uma proposta de estilo de vida saudável, seu uso pode contribuir para evitar a ocorrência de certas doenças degenerativas. Nesse período, publicamos cerca de 15 artigos científicos, e o ponto comum entre eles é que o produto protege o DNA contra lesões causadas por estresse oxidativo”, acrescenta Grisolia.
Belezura do cerrado
Cabelos definidos, além de uma pele macia e hidratada. Essas são algumas das promessas dos produtos de beleza feitos à base de pequi. O fruto brasileiro invadiu a indústria dos cosméticos. Xampus, máscaras, pomadas que o acrescentaram às suas fórmulas garantem bons resultados.
O óleo utilizado na produção dos cosméticos é extraído da polpa do fruto. Segundo France Batistelli, diretora de pesquisa e desenvolvimento do grupo Mutari, o produto pode ser usado tanto no cabelo quanto na pele. A composição de ácidos graxos oleosos é muito semelhante à do sebo da pele, daí seu benefício.
No cabelo, o óleo permite uma modelação de forma natural, sem pesar ou deixar os fios com aspecto ensebado. “Existem ácidos graxos que são elementos gordurosos. Dependendo da composição, formam um filme sobre o cabelo e garantem maleabilidade à fibra”, explica France.
De acordo com a pesquisadora, ainda foi descoberta a eficácia dessas formulações em realçar os cachos. Para quem tem o cabelo liso, a substância permite manter os fios alinhados. “É uma matéria-prima muito interessante. O fruto contém alguns ômegas na composição, que hidratam e nutrem o cabelo, sem deixá-lo oleoso.” Para France, é fundamental aproveitar os recursos que a biodiversidade brasileira oferece. “O pequi é nosso”, destaca.
Além da cor amarela e do sabor singular, o odor é uma das fortes características do fruto. Porém, de acordo com a pesquisadora France Batistelli, não há com o que se preocupar: os cosméticos não têm o mesmo cheiro do fruto. Na Mutari, fragrâncias são usadas para bloquear o aroma. “A gente manda o produto sem fragrância para o nosso fornecedor de essências. Em cima da formulação, ele vai desenvolver a melhor para eliminar o cheiro natural do pequi”, esclarece.
Por Correio Braziliense