José Osmar Medina Pestana, ao ciceronear os participantes do Simpósio A Pandemia e A Literatura, promovido pela Academia Nacional de Medicina, conduziu-nos a pensar esta realidade, por meio da leitura de A Peste, de Albert Camus. Sintetizou a obra como aquela que ‘versa primariamente sobre a morte, mas transcende o ser, aplicada, de maneira metafórica, a muitas situações e relações sociais’ e como aquela que é ‘um livro de cabeceira para ser lido muitas vezes, pois, em cada momento de leitura, o drama, ali narrado, encaixa-se em algum momento de nossa vida’.
Era o surto da peste Negra – a peste Bubônica – que assolou a Europa, no séc. XIV, e matou milhões de pessoas. ‘A cidade argelina de Orã foi o palco do drama. De repente, ratos aparecem mortos em vários lugares da cidade e, aos poucos, pessoas começam a apresentar sintomas da doença e os mortos se acumulam. E, de repente, não mais que de repente’, tomando de empréstimo a frase repetida de Vinícius de Morais, as pessoas se viram vítimas dos roedores e perderam suas identidades, passando a meros números à espera de um futuro incerto e indefinido, no qual impera a morte e o desespero.’
‘A cidade foi posta em quarentena rígida e, então, os personagens, moradores e visitantes – presos – sofreram por quase um ano as consequências e os problemas que a situação desencadeara. O padre entende que é um castigo divino e faz um sermão inflamado, mas, por ironia, ele mesmo morre alguns dias depois. O discurso do castigo se desvanece logo quando a primeira criança morre. Eis que esta é alguém que todos têm como inocente, sem pecados a serem purgados’. Este episódio pode ter parâmetro na destruição bíblica de Sodoma e Gomorra, em que morreram inúmeras crianças que, por princípio cristão, não tinham nada a ver com a depravação. O certo é que, no livro, Camus traça um cenário muito familiar: ‘Já não havia então destinos individuais, mas uma história coletiva que era a peste e sentimentos compartilhados por todos. O maior era a separação e o exílio, com o que isso comportava de medo e de revolta”. Depois de uma angustiante narrativa do momento em que ‘as famílias são separadas, o pânico se instala, as almas mesquinhas se revelam, o campo de futebol vira hospital improvisado, alguns enriquecem à custa da venda de produtos de primeira necessidade a preços estratosféricos e eis que, repentinamente, assim como começou, a doença desaparece’.
Porém ‘os homens já não são mais os mesmos, depois que perdem seu senso de segurança’, constata o confrade Osmar Pestana. O personagem principal de A Peste é um médico, Dr. Rieux, homem lúcido que, ao lado de outros personagens masculinos, luta de forma renhida para salvar vidas, aliviar males. Impossível não se identificar com ele, nós, os que escolhemos a senda hipocrática. Assemelhamo-nos quanto à forma de enfrentar o drama, quanto às escolhas difíceis, quanto à constatação de que a humanidade perde algumas vezes, quando assaltada pelas doenças advindas das pragas.
O romance, além de tratar da responsabilidade pessoal de cada um, das escolhas que fazemos, é uma crítica à opressão e aos regimes opressores e, principalmente, ao nazismo, embora Osmar nos tenha lembrado de que Camus nunca tenha assumido tal metáfora. Vale lembrar, entretanto, que Camus foi membro ativo da resistência francesa contra a ocupação alemã na França.
Lembra-nos o confrade que, ao lermos A peste, de Albert Camus, se abstrairmos o cenário e o nome da peste, onde a história se desenvolve, poderemos nos encontrar facilmente neste 2020, na travessia da Covid-19. ‘As semelhanças são impressionantes, à exceção do avanço tecnológico e do pouco que já aprendemos da prevenção e disseminação do mal, principalmente porque ainda não há nem vacina, nem remédios apropriados’, como no séc. XIV.
É clara a relação entre o cenário da obra e o momento da pandemia provocada pela Covid-19, mas também deve ser claro o sentido de nossas escolhas e decisões diante dessas circunstâncias. Nesse ponto, a literatura nos recomenda mais humildade. A peste desaparece, mas continua à espreita, pronta para nos assaltar no inesperado de nossa altivez que ousa, muitas vezes, ignorar a importância da ciência para encontrar saídas que se escondem no labirinto criado pelo caos, durante o assalto das pestes.
Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, de Letras do MA e da AMM.